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Título: Nadar na Piscina dos Pequenos
Autor: Golgona Anghel
Editora: Assírio & Alvim
Nadar na Piscina dos Pequenos ainda não tinha sido anunciado e eu já andava por aqui a pedinchar um novo livro de poesia de Golgona Anghel. Estava muito ansiosa por lê-lo e com as expectativas muito elevadas o que, neste caso, correu bastante bem. Golgona não desilude nem um pouco, pelo contrário, fez-me gostar ainda mais da sua escrita. Por muito que queira escrever sobre este livro, as palavras custam a sair, é preciso ler e sentir o que está escrito no papel e que, muitas vezes, fica gravado no nosso coração e na nossa mente. Resta-me aguardar pelo próximo.
Hoje vieram buscar-me cedo.
É a tal história, tiram-me do sono,
passam-me para a maca e
ninguém quer saber das minhas vontades.
Nem fui fazer chichi, nem me fizeram o buço.
Estou com o bordado da fronha estampado nas fuças
e, com este péssimo aspecto,
fazem-me desfilar pelos corredores cheios de gente
que acorda de madrugada
e se põe bonita para vir aqui tirar fotografias
a rins e pulmões.
Fora a vadiagem que só entra para aquecer os pés,
estou eu, feita bicho, amarrada a uma etiqueta,
como os cavalos da feira.
Por isso, puxo com os dois braços
uma fralda que encontro por perto
e enxugo o meu rosto pejado de medo,
porque tudo isto é mesmo uma merda,
mas depois melhora um pouco
quando me enchem de morfina
e me devolvem, à saída, o telemóvel.
*
Sempre me pareceu um pouco cobarde
chamar sonho à morte,
dizer negros em vez de pretos,
tia em vez de sogra,
idosos em vez de velhos,
pessoas com rendimento mínimo
em vez de esfomeados, pobres, nós.
Deveria ser completamente proibido
ler amor onde está escrito Roma,
comer com o garfo quando se deve usar palitos.
Os dicionários têm razão.
Precisamos de mais definição.
Não muda nada adocicar a água dos afogados.
As metáforas podem até impressionar
mas não são nada práticas.
Olhem aqui a nossa senhora da verdade, o senhor director,
só figuras, só estilo:
todos trajados de fatinho,
e depois nadam na piscina dos pequenos.
Pontuação: 5/5
Título: Manhã
Autor: Adília Lopes
Editora: Assírio & Alvim
Adília Lopes foi uma surpresa muito agradável, fiquei com vontade de ir a correr comprar Bandolim, tal a paixão.
No meu coração há um lugar especial para poetas e poetisas, no qual passei a incluir também Adília, à qual gostaria muito de dar, um dia, um abraço. Ficam as partes que mais gostei abaixo neste livro que pode consideraria um diário poético:
Escrever um poema
escavar uma toca
*
Palavras Caras
Em minha casa, detestávamos pessoas bem-falantes, palavras caras. De uma vez, apareceu a prima Maria Lucília a dizer já não sei porquê:
- Fiquei muito confrangida.
Passámos a chamar-lhe "a confrangida".
Sempre que aparecia alguém na televisão a declamar poesia ou a falar de poesia, desligávamos a televisão.
*
Chego à janela porque preciso de ar e de árvores. Ah, se não fosse esta velhinha janela onde me vou debruçar para ouvir a voz das cousas, eu não era a que sou.
*
Ler e Estudar
(...)
Entre os 15 e os 18 anos li o Em busca do tempo perdido todo em francês. Comprei na Buchholz. Tinha uma ideia infantil: achava que de volume para volume o francês de Proust seria mais difícil e eu podia não perceber. Só comprava um volume quando acabava de ler o volume anterior. Não tive dificuldades. Tinha o Petit Robert. Havia palavras que não vinham no Petit Robert. Não me afligi.
Aos 21 anos recorri a uma psicanalista estúpida. Contei-lhe que tinha lido o Em busca do tempo perdido. Ela disse-me: Ainda não perdeu muito tempo! As professoras e as psicanalistas não leram livros. Percebi isto tarde. Não vale a pena.
Não foi por estudar muito e por ler muito que adoeci dos nervos aos 21 anos, foi por viver num ambiente deprimente. O que me valeu foi ter estudado e lido muito. Estudar e ler é quase o melhor que há.
Pontuação: 4/5
Título: Como Uma Flor de Plástico Na Montra de Um Talho
Autor: Golgona Anghel
Editora: Assírio & Alvim
A escrita de Golgona Anghel aliada às temáticas que aborda deixam-me à beira do delírio porque fico, muitas vezes, cheia de vontade de ter escrito alguns dos seus poemas (a maioria). Quando a leio, transporto-me imediatamente para o interior dos seus poemas, numa busca incessante pelo que está escrito nas suas linhas e entrelinhas. Não sendo o meu preferido dos dois, é quase tão bom como Vim Porque Me Pagavam. Se tiverem oportunidade de ler a poesia de Golgona Anghel não a percam, depois contem-me como foi.
TUDO O QUE NÃO É LITERATURA ABORRECE-ME -
queixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,
onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha -
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso.
Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não me levantes a mão.
Vem, vem apenas,
come as you are
- embora seja tarde.
Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e vozes molhadas em tabaco.
Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantavam as saias à história.
Já tirámos os cavalos,
já limpámos as trincheiras.
Vem ralar na minha pele arrepiada
a cor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.
Vem sem falta -
o palco está vazio,
a sala cheia.
Com o passo lento das derrotas,
um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á até ao último acto.
Pontuação: 4
Título: A Letra Encarnada
Autor: Nathaniel Hawthorne
Editora: Assírio & Alvim
A Letra Encarnada foi uma excelente surpresa de final de ano. Não é um livro fácil, é necessária alguma persistência e paciência para reler algumas partes, de modo a que seja possível extrair um sentido para o que Hawthorne nos pretende transmitir através de um magnífico retrato da sociedade americana do século XVII, tendo este sido publicado em 1850.
Hawthorne é mestre na construção dos personagens e na forma como revela a dimensão humana neles contida. Apesar de ter como tema central o Adultério e tudo o que lhe estava associado naquela época, este livro representa muito mais do que isso. É um livro sobre a vergonha, a culpa e a vingança e, por fim, sobre o alívio que a confissão nos traz. É fascinante a forma como Hawthorne nos descreve os sentimentos dos personagens, o seu sofrimento, angústia e libertação, que, apesar de tão distantes no contexto em que estão incluídos nesta obra, continuam a ser actuais e estarão para sempre inerentes ao ser humano.
Onde quer que haja um coração e uma inteligência, as doenças do corpo ressentem-se das particularidades deles.
A Letra Encarnada contém um esplêndido elogio à mulher, representada por Esther, condenada a usar a letra A ao peito que, mais do que um pedaço de tecido pregado à sua roupa, era algo que lhe estava gravado na pele, uma marca que a distinguia da restante sociedade, que a excluía, mas que, nem por isso, fez com que Esther fosse uma mulher fraca e se vergasse perante a sociedade. Esther é de facto uma heroína da literatura e, por essa razão, este livro merece ser lido por todos.
Pontuação: 4
A Letra Encarnada é a obra principal de Nathaniel Hawthorne e está incluída no projecto 1001 livros para ler antes de morrer. Esta edição em particular foi traduzida por Fernando Pessoa, o que torna esta leitura duplamente interessante.
Adorei o prefácio, que fala mais de Pessoa e dos motivos que poderão ter estado na origem desta sua tradução, do que da obra em si, mas foi um suplício ler a introdução de Hawthorne a este livro. Li-a na ânsia de poder chegar à obra propriamente dita, mal suportando o aborrecimento que estava a produzir em mim (ainda não percebi se é realmente aborrecida ou se eu é que não estava com a disposição indicada para a ler). Felizmente cheguei ao seu final e, na página 81, pude finalmente começar a ler esta aclamada obra.
Após as dúvidas iniciais, sustentadas essencialmente pela interminável introdução, posso agora afirmar que estou a desfrutar bastante da sua leitura. É muito especial a forma como Hawthorne descreve a situação em que se encontra Hester Prynne, condenada, devido a adultério, a ter de usar a letra A, feita de tecido encarnado, pregada à sua roupa, sobre o peito, e tudo o que se segue a esta condenação e exposição em praça pública, sendo depois libertada com a sua filha, Pearl, nascida da relação adúltera que Hester teve com um homem, até ao momento desconhecido. Estou ansiosa por saber o que se segue e como vai desenvolver-se esta relação de mãe e filha.
Os próximos livros que pretendo ler no mês de Novembro são de José Saramago e Teresa Veiga, para o projecto Ler os Nossos, sendo que com a leitura de Terra do Pecado darei finalmente início ao projecto Ler Saramago, algo que já estava a adiar há bastante tempo. Nunca li nada de Teresa Veiga e tenho muita curiosidade em fazê-lo, especialmente devido a este fantástico título.
Esta semana recebi uma encomenda com estes quatros livros (e ainda está um em falta), todos de autores que nunca li e que fui vendo repetidas vezes em pesquisas que fiz, na tentativa de chegar a uma lista de livros essenciais, ou de leitura obrigatória (nem sempre estes títulos em concreto, mas destes autores). Gosto muito deste tipo de listas, mas há tanta informação sobre o assunto que em vez de chegarmos a 100 ou 200 livros e pararmos, ficamos com uma lista que ultrapassa largamente este número, dividida entre autores intemporais, autores contemporâneos, autores portugueses, escritoras de leitura obrigatória, e que parece que irá perpetuar-se até chegarmos ao "fim da internet". Enfim, um mar de informação que nos deixa em extâse, afinal é o nosso amor, e em pânico, porque não haverá tempo nem possibilidade (financeira, editorial, etc.) para tudo.
Há cerca de um mês, depois destas pesquisas mais ou menos aleatórias, comecei a fazer um trabalho de investigação baseado no livro 1001 Books You Must Read Before You Die (1001 Livros para Ler Antes de Morrer), baseando-me na lista em inglês, através da qual procurei as edições correspondentes em português, título, editora, escritor, nacionalidade, género, link no goodreads, lido/não lido, na minha biblioteca pessoal ou não. O ideal seria ler todos os livros desta lista, embora sejam imensos e seja coisa para demorar uns bons anos, mas sobretudo alargar o meu conhecimento a nível literário. Há tanta coisa que ainda desconheço.
Penso que tenho sensivelmente um quarto do trabalho feito, mas tenho tido alguma preguiça em adiantá-lo nas últimas semanas. Além de ser um trabalho moroso, torna-se demasiado mecanizado por vezes e não quero que seja uma obrigação. Tem de ser algo para ir fazendo quando tiver vontade, que me dê prazer em descobrir, que me faça enervar por tantos ainda não terem sido editados em Portugal. Espero este fim-de-semana adiantar mais alguns títulos e pode ser que quando acabar nasça aqui um projecto para concretizar até morrer.
Título: Os Passos em Volta
Autor: Herberto Helder
Editora: Assírio & Alvim
Decidir que pontuação dar a este livro foi um processo demorado, pelo que escrever uma opinião sobre o mesmo, tornou-se também uma árdua tarefa. Não é um livro fácil, mas contém partes incrivelmente belas. Os Passos em Volta é um livro que claramente ou se ama ou se odeia, não há lugar para meios-termos.
Na revista Estante da Fnac (a partir da qual escolhi este livro para ler durante o Projecto Ler os Nossos, tal como já tinha referido aqui), este livro é descrito como estando entre o conto, o romance e o discurso autobiográfico, num livro que espelha o homem-poeta com um tom reflectivo de quem procura respostas. Referem também que Herberto Helder foi um dos pioneiros do surrealismo em Portugal e julgo que foi este o factor que determinou que a minha experiência não fosse completamente perfeita. Como já tinha referido no post sobre as minhas primeiras impressões sobre o livro, os primeiros capítulos/contos foram-me difíceis de interiorizar e compreender, acredito que sobretudo devido a esta componente mais surreal. Por melhor que fossem as minhas intenções e fascínio pelos restantes capítulos, senti um certo desapontamento nas partes em que não encontrei um sentido, mas assumo-o como uma lacuna minha, enquanto leitora.
Falando agora no que me deixou de coração cheio ao ler este livro: há algumas passagens e até mesmo contos inteiros deliciosamente perfeitos. Há qualquer coisa de magnético na escrita de Herberto Helder, que penso não ter conseguido captar quando li a sua poesia (uma ínfima parte, diga-se, pois até agora li apenas Servidões, publicado em 2013). Para além de alguns capítulos da primeira metade deste livro, fascinaram-me sobretudo os últimos (o tal discurso autobiográfico que citei acima), o que me fez ficar tentada a atribuir-lhe as cinco estrelas. Puro deleite.
Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu - simples, tenebrosa - entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria em nós dois ali sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.
Sim, deite mais brandy. Sou um bêbado, claro. O que esperava? Que fosse um apóstolo, um assassino, um político, um anjo? Não, sou apenas um bêbado. Mais dois ou três dedos da bebida impura, como você diz nessa tão pitoresca linguagem moral. Não estou a pedir-lhe o amor ou a glória. É brandy e, repare, brandy de terceira categoria. Não é amor, mesmo de terceira categoria. Nem a glória de terceira categoria, coisa suficiente para nos sentirmos muito perto de Deus. Também já tive o amor. O que não teve a gente neste universo tão pródigo? Era arrebatador.
Contudo, não consigo fazer um balanço completamente perfeito desta leitura para lhe atribuir a pontuação máxima. Posso sim dizer que esteve bastante perto disso e que se fosse mais dada ao surrealismo, seriam cinco estrelas, sem qualquer dúvida. Não é um livro que recomende a todos os leitores, pois julgo que é necessária alguma maturidade para o ler, coisa que eu própria ainda não considero que tenha em abundância.
Pontuação: 4,5/5 (não gosto de dar meias-estrelas, mas neste caso é mesmo necessário)
O primeiro impacto com esta obra de ficção de Herberto Helder não foi tão bonito como imaginei. Estava com algum receio, confesso, mas não esperava ficar completamente à deriva nos três primeiros capítulos.
Três curtos capítulos, para mim, tão complexos de decifrar. Tive de reler constantemente diversas frases, parágrafos, diálogos, em busca de um sentido, a maioria das vezes em vão. Comecei a sentir um ligeiro receio de que o livro fosse todo assim, não tencionava desistir, mas adivinhava uma constante luta que me impossibilitaria de desfrutar da leitura.
Passei, quase que instantaneamente, a uma fase de tristeza imensa porque, provavelmente, deveria ser um problema meu. Contudo, eis que ao quarto capítulo a magia acontece. No quinto e no sexto, continua a espalhar-se. Uma mudança subtil e, ao mesmo tempo, tão dramática, que preciso de ler desesperadamente os próximos. Isso e rezar para que não volte a tornar-se num conceito abstrato, de onde não lhe consiga desvendar um sentido, nem que seja só meu.